terça-feira, 17 de janeiro de 2012

MAIS UMA DOSE...



Ontem, no meio de uma crise de insônia,  amiga íntima e presente de toda uma vida, escrevi uns versos. Depois de publicar na Confraria, o Renato de Mattos Mota dividiu comigo o consolo: até os gigantes recorriam aos medicamentos, comprimidos ou outros recursos químicos para atenuar as dores do mundo.

Eis meu poema:

Noites de insônia
tributos velados,
Encontros marcados
Com dores e anseios
Alguns devaneios
sonhos disfarçados.

São brindes mentidos
em copos rachados,
são gritos calados
e gestos contidos
 estopim nos ouvidos
e olhos cerrados.

Copo d’água
Alprazolam
Adiam a ansiedade
Para, quem sabe?
Amanhã!
Às loucuras da noite,
Para as loucuras tão minhas
Não existe divã.

(Catarina Maul)


E a contribuição do Renato

Num Monumento à Aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,
... o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
*
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

(João Cabral de Melo Neto - Em A educação pela pedra - 1966)





RECEITUÁRIO SORTIDO
in "Discurso de Primavera e Algumas Sombras"

Calma.
É preciso ter calma no Brasil
calmina
calmarian
calmogen
calmovita.

Que negócio é esse de ansiedade?
Não quero ver ninguém ansioso.
O cordão dos ansiosos enfrentemos:
ansipan!
Ansiotex!
ansiex ansiax ansiolax,
ansiopax, amigos!

Serenidade, amor, serenidade.
Dissolve-se a seresta no sereno?
Fecha os olhos: serenium,
serenex...

Dói muito o teu dodói de alma?
Em seda e sedativo te protejas.
Sedax, meu coração,
sedolin
sedotex
sedomepril.
Meu bem, relaxe por favor.
Relaxan
Relaxatil.
Batem, batem à porta? Relax-pan.

Estás tenso, meu velho?
Tenso de alta tensão, intensa, túrbida?
Atenção: tensoben
tensocren
tensocrin
tensik
tensoplisin.

Anda, cai no sono,
amigo, olha o sonix.
Como soa o sonil
sonipan sonotal
sonoasil
sonobel sonopax!

E fique aí tranqüilo tranquilinho
bem tranquil
tranquilid
tranquilase
tranquilan
tranquilin
tranquix tranquiex
tranquimax
tranquisan
e mesmo tranxilene!

Estás píssico, talvez
de tanto desencucarem tua cuca?
Estás perplexo?
Não ouves o pipilar: psicoplex?
psicodin
psiquim
psicobiome
psicolatil?
Não sentes adejar: psicopax?

Então morre, amizade. Morre presto,
morre já, morre urgente,
antes que em drágea cápsula ampola flaconete
proves letalex
mortalin
obituaran
homicidil
thanatex thanatil
thanatipum!

(Carlos Drummond de Andrade)



E agora os Confrades!


RECEITA

Contra o tédio,
na mocidade,
o melhor remédio
... era Oswald de Andrade.

(Pois
se tinha medo –
ou mesmo raiva –
poema-pílula não faltava.)
((Edweine Loureiro)




Insônia

Sono é momento escasso
com o desenrolar da vida
está vinculado
à dor,
à alegria,
ao amor.
Pra dor o diminutivo e carinho,
pra alegria se aumenta o sorriso
e para o amor “babou”... o jeito é viver...
Uma dose de lembranças misturadas à negação
pra começar a noite...
Com certeza ele não virá.
O grito guardado, o sonho proibido,
os olhos fechados
e o sorriso não lábios melhora mais ele não vêm...
O gosto da infância se achega,
tentando ser presença,
tudo de bom, as fases da vida se fazem presentes
todos e tudo se chegam sem medo
e ela vence mais uma vez...
É hora de levantar e o sono não veio.

Rodolfo Andrade

Última Dose

A vida de fato é uma metamorfose,
Está vazio o frasco de glicose,
Sinto a náusea percorrendo minhas veias,
E dentro do peito um calor me incendeia,
E que saudade... Já sinto sua falta...
Tá ficando tarde e não recebo alta!
Ressecada minha garganta grita por uma gelada,
Ou até mesmo um quente pra curar essa ressaca...
 “- Quase morri? Sorri para o Doutor...
O Senhor quer é me assustar... Faça-me o favor...”
E então me encarou e falou em tom sério:
“-Filho se demoraste 15 minutos, estaria num cemitério...”
Naquele momento me arrepiei completamente,
Lembrei-me de um túnel claro e escuro... Intermitente...
Do meu corpo estava ausente...
E tal promessa veio em minha mente...
Sou muito novo pra morrer de cirrose...
Deixe-me voltar e prometo ter sido esta minha última dose...

Felipe Quirino

3 comentários:

Renato de Mattos Motta disse...

O Cabral escreveu esse poema por conta de ter uma enxaqueca crônica que muitas vezes o incapacitava.

Já o Drummond, não sei (ainda que conheça há muito mais tempo esse poema) mas certamente se inspirou em alguma hipocondria...

Elis Bondim disse...

Ótimos poemas, todos! Inteligentes.


Falando em remédios muitas vezes fico pensando o quanto se toma remédios, a cada dia mais. É remédio pra qualquer coisinha, e assim a indústria farmacêutica se enriquece. Muitas vezes são 'remedinhos' desnecessários. É uma questão muito discutível e séria.

Catarina Maul disse...

Por isso, Elis, em nossa cidade, Petrópolis, tem mais farmácia que qualquer outro tipo de estabelecimento comercial.
Os males da saudade, do amor, da solidão, do medo, e tantos outros que poderiamos curar em uma roda de amigos com um papo animado, estamos tentando curar com uma capsula.
Assim caminha a humanidade! :(