Ontem, no meio de uma crise de insônia, amiga íntima e presente de toda uma vida, escrevi uns versos. Depois de publicar na Confraria, o Renato de Mattos Mota dividiu comigo o consolo: até os gigantes recorriam aos medicamentos, comprimidos ou outros recursos químicos para atenuar as dores do mundo.
Eis meu poema:
Noites de insônia
tributos velados,
Encontros marcados
Com dores e anseios
Alguns devaneios
sonhos disfarçados.
São brindes mentidos
em copos rachados,
são gritos calados
e gestos contidos
estopim nos ouvidos
e olhos cerrados.
Copo d’água
Alprazolam
Adiam a ansiedade
Para, quem sabe?
Amanhã!
Às loucuras da noite,
Para as loucuras tão minhas
Não existe divã.
(Catarina Maul)
E a contribuição do Renato
Num Monumento à Aspirina
Claramente: o mais prático dos sóis,
... o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
*
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
(João Cabral de Melo Neto - Em A educação pela pedra - 1966)
RECEITUÁRIO SORTIDO
in "Discurso de Primavera e Algumas Sombras"
Calma.
É preciso ter calma no Brasil
calmina
calmarian
calmogen
calmovita.
Que negócio é esse de ansiedade?
Não quero ver ninguém ansioso.
O cordão dos ansiosos enfrentemos:
ansipan!
Ansiotex!
ansiex ansiax ansiolax,
ansiopax, amigos!
Serenidade, amor, serenidade.
Dissolve-se a seresta no sereno?
Fecha os olhos: serenium,
serenex...
Dói muito o teu dodói de alma?
Em seda e sedativo te protejas.
Sedax, meu coração,
sedolin
sedotex
sedomepril.
Meu bem, relaxe por favor.
Relaxan
Relaxatil.
Batem, batem à porta? Relax-pan.
Estás tenso, meu velho?
Tenso de alta tensão, intensa, túrbida?
Atenção: tensoben
tensocren
tensocrin
tensik
tensoplisin.
Anda, cai no sono,
amigo, olha o sonix.
Como soa o sonil
sonipan sonotal
sonoasil
sonobel sonopax!
E fique aí tranqüilo tranquilinho
bem tranquil
tranquilid
tranquilase
tranquilan
tranquilin
tranquix tranquiex
tranquimax
tranquisan
e mesmo tranxilene!
Estás píssico, talvez
de tanto desencucarem tua cuca?
Estás perplexo?
Não ouves o pipilar: psicoplex?
psicodin
psiquim
psicobiome
psicolatil?
Não sentes adejar: psicopax?
Então morre, amizade. Morre presto,
morre já, morre urgente,
antes que em drágea cápsula ampola flaconete
proves letalex
mortalin
obituaran
homicidil
thanatex thanatil
thanatipum!
(Carlos Drummond de Andrade)
E agora os Confrades!
RECEITA
Contra o tédio,
na mocidade,
o melhor remédio
... era Oswald de Andrade.
(Pois
se tinha medo –
ou mesmo raiva –
poema-pílula não faltava.)
Contra o tédio,
na mocidade,
o melhor remédio
... era Oswald de Andrade.
(Pois
se tinha medo –
ou mesmo raiva –
poema-pílula não faltava.)
((Edweine Loureiro)
Insônia
Sono é momento escasso
com o desenrolar da vida
está vinculado
à dor,
à alegria,
ao amor.
Pra dor o diminutivo e carinho,
pra alegria se aumenta o sorriso
e para o amor “babou”... o jeito é viver...
Uma dose de lembranças misturadas à negação
pra começar a noite...
Com certeza ele não virá.
O grito guardado, o sonho proibido,
os olhos fechados
e o sorriso não lábios melhora mais ele não vêm...
O gosto da infância se achega,
tentando ser presença,
tudo de bom, as fases da vida se fazem presentes
todos e tudo se chegam sem medo
e ela vence mais uma vez...
É hora de levantar e o sono não veio.
Rodolfo Andrade
Última Dose
A vida de fato é uma metamorfose,
Está vazio o frasco de glicose,
Sinto a náusea percorrendo minhas veias,
Está vazio o frasco de glicose,
Sinto a náusea percorrendo minhas veias,
E dentro do peito um calor me incendeia,
E que saudade... Já sinto sua falta...
Tá ficando tarde e não recebo alta!
Tá ficando tarde e não recebo alta!
Ressecada minha garganta grita por uma gelada,
Ou até mesmo um quente pra curar essa ressaca...
“- Quase morri? Sorri para o Doutor...
O Senhor quer é me assustar... Faça-me o favor...”
Ou até mesmo um quente pra curar essa ressaca...
“- Quase morri? Sorri para o Doutor...
O Senhor quer é me assustar... Faça-me o favor...”
E então me encarou e falou em tom sério:
“-Filho se demoraste 15 minutos, estaria num cemitério...”
Naquele momento me arrepiei completamente,
Lembrei-me de um túnel claro e escuro... Intermitente...
Do meu corpo estava ausente...
E tal promessa veio em minha mente...
Sou muito novo pra morrer de cirrose...
Deixe-me voltar e prometo ter sido esta minha última dose...
Deixe-me voltar e prometo ter sido esta minha última dose...
3 comentários:
O Cabral escreveu esse poema por conta de ter uma enxaqueca crônica que muitas vezes o incapacitava.
Já o Drummond, não sei (ainda que conheça há muito mais tempo esse poema) mas certamente se inspirou em alguma hipocondria...
Ótimos poemas, todos! Inteligentes.
Falando em remédios muitas vezes fico pensando o quanto se toma remédios, a cada dia mais. É remédio pra qualquer coisinha, e assim a indústria farmacêutica se enriquece. Muitas vezes são 'remedinhos' desnecessários. É uma questão muito discutível e séria.
Por isso, Elis, em nossa cidade, Petrópolis, tem mais farmácia que qualquer outro tipo de estabelecimento comercial.
Os males da saudade, do amor, da solidão, do medo, e tantos outros que poderiamos curar em uma roda de amigos com um papo animado, estamos tentando curar com uma capsula.
Assim caminha a humanidade! :(
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