Rosana Banharoli, em sua estreia na Confraria da Poesia Informal, mexeu com a alma e o coração de todos os confrades ao publicar o poema abaixo, em homenagem a sua avó Amelia. De repente, as lembranças de muitos foram remexidas, transformando o assunto em tema para esse conjunto de poesias onde avós e avôs viram personagens principais.... Pedaços de nossas infâncias são aqui transformados em versos.
Amélia
Sustentada por vertentes de notas
Flutuo nos cheiros fugidios de velhos baús.
Hortelã capim-cidreira erva-doce melissa.
Braços estendidos a tocar o passado buscam
A clareza das respostas empoeiradas nos bolsos
De antigos casacos.
Queijo branco doce de abóbora compota de figo
Bolinho de chuva leite com groselha.
Mãos senis do outro lado,
Onde quase chego.
Piso na relva que alicerça esta passagem .
Sinto as pequenas flores que descolaram de seus vestidos.
Quero me confortar nelas.
Só alcanço o raminho de arruda de traz de sua orelha.
Chorinhos e risinhos de pés descalços guardados em seus ouvidos
De cabelos lilás e avental de plástico.
Desço os degraus esverdeados de meus devaneios e,
A música chega ao final.
Rosana Banharoli
........................
Vô Silvio
Todo como antes
Em ombros arqueados
: lida no café
notas no violão
passos no salão
canos tubos parafusos
macacão recomendação –
operário padrão.
Filhas do seu filho
Netas de seu primogênito
Irmãs irmãos
& toda a parentada
recebe ancorado na bengala.
Eita contador de causos!
Revolução de 32
Fardado estava lá
Com matrícula 5120
Se sindicalizou e
Com honra ao mérito
Metalúrgico se aposentou.
Seus diplomas alicerçaram
A minha construção
E na sua
Pendurei os meus e os das filhas.
Somos todas da família.
Seus olhos abertos
Oferecem ondas na formação
De tão transparentes
Vejo-as lá na imensidão.
Os meus prefiro manter fechados adormecidos
Vagueio pela arrebentação sem me molhar
Sem colidir nas rochas.
Estou protegida neste devaneio
De prazer e mistério.
À minha frente
No etéreo e no presente
Um homem que sempre fez
Sombra com o próprio chapéu:
Porto Seguro para uma nau errante.
Rosana Banharoli
.....................
Oitocentos quilometros ao Sul
Cheiro de mato
Terra vermelha
Calor que não há onde nasci
Pé de jabuticaba
de caju
Brincadeira com os primos
Banho no tanque de lavar roupa
Banho de mangueira
Banho de rio
Churrasco
com Pirogue
Role de moto
Vento no rosto
Dona Maria
Filha de Stanislava Visboski
que veio da Polônia menina
e construiu aqui a vida
numa terra mais quente
que o sangue de seus ascendentes.
Vó que ensinou-me o valor
da honra verdadeira
não aquela imposta
mas aquela sentida
a unica honra que pode
ser aprendida.
Michelle Hernandes
.....................
O HOMEM QUE TINHA FAZENDAS
que tinha um tio que cuidava
Santa Fé
Ripa
Banhado do Cervo
eram longe da cidade
bem longe, na verdade
eu vivia em Porto Alegre
as terras em Cangussu.
demorava pra ir
da cidade para o campo
pra mudar de mundo
do cimento para o verde
levava três horas e meia
no caminho
capões de mato
gado
pássaros em bando.
lembro das emas correndo
quase tanto quanto os carros
mas isto foi antes da soja.
que a soja matou as emas
que a gente chamava avestruz
mesmo sabendo que não
avestruz é africana
só vive na savana
a soja acabou com a ema
que tinha ovos enormes
e corria como os carros
no rumo das fazendas,
com rabos de espanador.
lá onde a luz era lampião
porque os fios não chegavam
cruzar o Sapato de balsa
antes que houvesse a ponte
era sinal de tá perto
só mais uns tantos quilômetros
por tanta terra batida
por pó por barro vermelho
por lebre cruzando a estrada
onde a cruzeira estendida
se aquecia de sol.
nas noites escuras
de vela querosene gás
quando no campo sem postes
lua virava holofote
na fazenda onde o Fonseca
era capataz de tudo
que morava com a Virgínia
que tinha uma penca de filhos
uns clarinhos como o Fonseca
e uns cinco mais escurinhos
puxando pra cor do Nena
que era meio faz-tudo
e um dia mudou pra cidade
sumiu no mundo descobrindo
que faz-tudo de fazenda
faz nada na cidade
faz ficar pobre doente cachaceiro
sem trabalho sem teto sem parente
mas se a Virgínia
tinha filhos coloridos
o Fonseca nem ligava
não era mesmo casado
e os filhos
era como não fosse dele nenhum
era como fosse tudo filho dele.
tanto é que foram todos
mais ele, mais a Virgínia
quando o Fonseca se foi
por conta de umas contas de gado
parecidas com as de Jacó
quando era pastor de Labão
mas meu tio não era sogro do Fonseca
como Labão de Jacó
e estranhou muito a tal coisa:
o Fonseca sempre tivera um gadinho
mas o que a gente estranhava
que só morria gado da fazenda
e só nascia gado do Fonseca...
quando meu tio chamou-o às falas
o Fonseca foi embora
levando a Virgínia
a tropilha de crianças
e o gado que acertaram pra não envolver a Brigada.
Santa Fé que era a sede
com cata-vento de água
com chuveiro de álcool
e geladeira de gás.
da Ripa cuidava o Bruno
que era casado com a Iná
era filho da Oona e irmão do Helmut
que Bruno o povo chamava
porque o nome era Brunald
que teve mais a Iná
um casalzinho de filhos
primeiro o Eli André
depois a Elisa Andréa.
campo longe da cidade
em tempo sem internet
menos que isso
de não ter luz
nem telefone
de ter que ir lá
pra poder saber das coisas.
da criançada levar cadeira
só pra ver matar borrego
que domingo ia ser churrasco.
de ver carneiro escapar
por gritar antes da faca.
mas porco não escapava
gritava esperneava berrava
e virava banha e carne
e da cabeça um queijo
que minha vó fazia
e que fui comer de novo
pedindo sem saber
num baguette em Paris
no Café de la Paix
a fazenda
cheirava a capim a pó a bosta de vaca
tinha um açude com carpas
churrasco de ovelha
se andava a cavalo
até a bunda doer
até não aguentar mais
ser criança da cidade
fora do mundo
da fazenda
que lá nos anos oitenta
Reforma agrária levou
porque o vô já não vivia
e as fazendas
eram duras de cuidar
viraram lembranças
das coisas
do meu Vô Zeca
que apagou como vela
nos braços da Vó Florzinha
deixando saudade
na gente
do homem que tinha fazendas.
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